A ameaça sobre possíveis retrocessos envolvendo a comunidade LGBT a partir do início da gestão do presidente Jair Bolsonaro (PSL), criticado por manifestações consideradas homofóbicas ao longo da carreira política, gerou um verdadeiro “boom” no número de casamentos entre pessoas do mesmo sexo no último mês de 2018. Embora o tema ainda não tenha sido abordado no novo governo e nem durante a campanha eleitoral, a população gay buscou formalizar as uniões por medo de perder os direitos já assegurados desde 2013.
Em dezembro, segundo a Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Rio Grande do Sul (Arpen-RS), ocorreram 133 casamentos homoafetivos no Rio Grande do Sul, ante apenas oito em novembro, alta de 1.562,5%.
Em 2017, foram 25 registros no último mês do ano, e, em dezembro de 2016, 35. As gaúchas Ana Carolina e Raquel Flores admitem que o plano era casar somente em 2020, o que incluiria fazer a “festa dos sonhos” das duas. Com o resultado das eleições e depois de ouvir advogados conhecidos, as duas decidiram antecipar a oficialização da união.
“O medo de perder esse direito foi tão grande que decidimos às pressas nos unir, não somente pelo papel alegando que estávamos casadas, mas para garantir que tenhamos todos os direitos reservados ao casal”, descreve Ana Carolina. “Fizemos isso pensando no futuro, se alguma de nós vir a faltar e até mesmo se quisermos constituir família, já que tudo é tão burocrático hoje em dia”, justifica ela.
Para a advogada e presidente da Comissão Especial da Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Maria Berenice Dias, a corrida aos cartórios se justifica. No Brasil, os casamentos homoafetivos são permitidos desde que a Resolução nº 175/2013 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) entrou em vigor e os matrimônios foram reconhecidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Desde então, todos os cartórios são obrigados a realizar casamentos entre pessoas do mesmo sexo. No entanto, por não haver uma lei específica para isso, existe, sim, o risco de a decisão ser revista, explica Maria Berenice, que é desembargadora aposentada da Justiça Estadual. “Com a formação dos novos ministérios e as nomeações para as pastas, há razão para acreditar na exclusão de alguns direitos. Um retrocesso nesse sentido, no entanto, mancharia a imagem do Brasil mundialmente”, acredita a advogada.
A onda de casamentos gays também mobilizou uma rede de prestadores de serviços. Diante da urgência, muitos casais não tinham dinheiro para organizar uma celebração. Fotógrafos, maquiadores e fornecedores de comida ofereceram descontos e até trabalho de graça como forma de demonstrar apoio à causa. Antes de oficializar a união de um ano e seis meses, as duas mulheres buscaram informações de outros casais na internet para entender os trâmites e saber a documentação necessária e direitos, como garantia de pensão, herança e adoção.
Com os papéis em mãos e a festa pronta, o casamento ocorreu no dia 12 de dezembro. Apesar de ainda não ter havido nenhum movimento por parte do governo para alterar o reconhecimento dos casamentos homoafetivos, a atendente diz que há relatos de cartórios que passaram a dificultar a burocracia quando o ano mudou. “Há muita queixa em relação à documentação exigida e à taxa cobrada pelos cartórios para efetivarem os casamentos”, arma.
Segundo Maria Berenice, a partir do momento em que o preconceito “é chancelado pelo presidente da República”, cria-se margem para resistências que não haviam antes. “O que tem surpreendido é que, depois de janeiro, começou a haver grandes empecilhos por parte dos registradores e tabeliães em realizarem casamentos”, diz Maria Berenice, que tem orientado queixas ao CNJ.
Qualquer revogação na medida que permite os casamentos teria de passar por aprovação de projeto de lei no Congresso, algo que enfrentaria grande resistência e que a Justiça com certeza.
Fonte: Jornal do Comércio