Vivemos uma época em que coexiste um governo de presidencialismo autoritário e meios de comunicação com poder absoluto que, não raramente, prestam-se a difundir mentiras e falsidades.
Usando dos meios disponibilizados por esta mídia (1) o autor lança um pequeno desafio: Seria verdade que exista, ou já tenha existido na Legislação Brasileira, um Decreto Presidencial, com a assinatura do presidente em exercício e de seu Ministro da Justiça, que determina pena de seis meses de prisão, e multa, para quem viesse a desobedecer norma relacionada a casamento religioso e civil?
Uma disposição com os termos: “O ministro de qualquer confissão, que celebrar as cerimônias religiosas do casamento antes do ato civil, será punido com seis meses de prisão e multa” seria possível existir na República Brasileira?
Parece absurdo, mas é fato. Não se trata de mais uma Fake News (conhecida expressão em idioma estrangeiro que identifica uma boa parte da informação divulgada pela mídia)! Realmente, no final do Século XIX, foi editado um Decreto Presidencial que continha a disposição acima.
O texto, que na atualidade tanto estranhamento provoca, é reprodução quase literal da cabeça do artigo 2º do Decreto nº 521, editado em 26 de junho de 1890, pelo Chefe do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brazil, Marechal Manoel Deodoro da Fonseca e por seu Ministro da Justiça, o Dr. M. Ferraz de Campos Salles.
Uma curiosidade histórica desconhecida da grande maioria dos oficiais de registro civil, ministros e sacerdotes religiosos e das pessoas em geral.
O autor destas linhas acredita, entretanto, que tal norma não funcionou efetivamente, que não houve grande resultado prático com a sua edição e que, provavelmente, apesar da existência de tal decreto, nenhum sacerdote católico tenha sido preso por realizar casamentos conforme sua crença e costume popular arraigado (permita-se a utilização de outra expressão conhecida de todos: “a Lei não pegou!”).
Ressalve-se, contudo, que tal afirmação é convicção pessoal deste autor e efetivamente pode não ser verdadeira, pode representar alguma falsidade ou exagero. A conclusão do autor pode ser fake, mas a existência deste Decreto não é. O seu texto integral está reproduzido ao final e pode ser acessado pelo endereço – http://legis.senado.leg.br/
Trata-se de um curioso fato histórico que ilustra muito bem uma verdade inquestionável confirmada inúmeras vezes e nas mais diversas situações: mudanças de costumes e hábitos arraigados no tecido social não acontecem com a mesma facilidade com que são editadas normas e regulamentos pelo Poder do Estado.
Não se deve questionar a efetividade da soberania estatal, mas também não se pode ignorar a força dos costumes e a existência de clandestinidade e de situações inúmeras que ocorrem à margem do poder do Estado.
Se tal afirmação é verdadeira nos dias de hoje, ainda mais efetiva era na época do nascedouro da República do Brasil. Evidente que a jovem república brasileira, com a edição de tal Decreto e com a tomada de diversas outras providências, pretendia assim afirmar a separação entre o Estado e a Religião.
Pela urgente necessidade de promover a afirmação de sua própria identidade e poder, a República Brasileira considerou o casamento religioso como cerimônia sem valor civil, negando o reconhecimento do Estado.
A história, entretanto, encarregou-se de suavizar o conflito entre o credo religioso e a política estatal.
O rigor inicial de legislação republicana foi superado por normas supervenientes que, reconhecendo validade e importância aos casamentos religiosos, sob determinadas condições e normas definidas pelo Estado, a eles atribuíram efeitos civis. O citado Decreto caiu no esquecimento e foi formalmente revogado apenas no ano de 1991, por meio do Decreto nº 11 de 18 de janeiro de 1991.
Sobre a história do Casamento Civil, seu surgimento em outros países e no Brasil, o Oficial de Registro Civil paulista, Marcelo Gonçalves Tiziani, em artigo denominado UMA BREVE HISTÓRIA DO REGISTRO CIVIL CONTEMPORÂNEO (2) esclarece: “Com efeito, é possível afirmar que o registro civil contemporâneo teve sua semente plantada no século XVIII, com a Revolução Francesa e a desvinculação da religião do Estado. A contar deste ponto, os órgãos estatais assumiram, definitivamente, a função de coletar, guardar e disponibilizar as informações do estado civil das pessoas naturais”.
Com referência ao casamento civil em nosso país, o registrador civil Marcelo Tiziani, no mesmo referido artigo, ensina que o Casamento Civil foi criado ainda no tempo do império com o objetivo de atender a uma necessidade das pessoas não católicas que, por não contraírem casamento segundo a religião oficial do Estado Brasileiro, não teriam o reconhecimento oficial de sua união e situação familiar.
Se para uma pessoa católica, no tempo do Império, o Casamento Civil era uma opção, para o adepto de outra religião ele representava a única forma do reconhecimento público de seu estado civil de casado.
Quando o Estado separou-se da Igreja, com a nova República proclamada, tudo mudou e o casamento civil passou a ser uma exigência comum para católicos, crentes e ateus. Por Lei e por Decreto.
E para a edição do rigoroso Decreto, em sua exposição de motivos, o primeiro presidente da República assim se manifestou: “Que o casamento, em virtude das relações de direito que estabelece, é celebrado sob a protecção da Republica”.
Mais do mesmo (ou quase isso)
Outro desafio ao raro e paciente leitor – um novo texto seria um pouco repetitivo e sem originalidade. Segue, portanto, como adendo ao mesmo.
Pergunta-se então: seria possível a existência de outro Decreto com intenção de acabar com a divulgação de falsas notícias / fake news? Teria existido uma norma com a intenção de julgar e punir todos aqueles que derem origem a notícias e boatos alarmantes, dentro ou fora do país?
Sim, ela também existiu; e foi editada pelo mesmo Marechal Deodoro da Fonseca, em 29 de março de 1890. Trata-se do Decreto n° 295. Seu objetivo era preservar a jovem República Brasileira de ataques às autoridades então constituídas. O objetivo era combater notícias que levantassem desconfiança com a intenção de favorecer planos de subversão da nova ordem imposta com a dissolução do antigo regime imperial (confira-se em http://legis.senado.leg.
O jornalista Vinicius Mota, da Folha de São Paulo, em 22 de abril de 2019, na edição impressa daquele grande jornal (pagina A-2) publicou breve artigo denominado Fake news, Belle Époque (4), inteligentemente chamando a atenção de todos nós para a atualidade do problema que representa a disseminação de falsidades e mentiras e, secundariamente, o papel político das mentiras e boatos.
No século XIX era a imprensa e o telegrama que detinham o poder da divulgação (além da tradicional e não menos eficiente boca-a-boca), atualmente a mídia é muito mais difusa e abrangente, conforme comprova e existência e alcance deste próprio texto.
Em uma brilhante observação final o jornalista encerra sua manifestação recordando que aquele novo governo, para derrubar a monarquia de D. Pedro II e obter apoio para suas pretensões políticas, valeu-se “da boataria e da difusão de falsidades” e, entretanto, uma vez no poder, usou de autoritarismo para combater quaisquer boatos e falsidades contrários a seu projeto de república brasileira.
Este tema, diferentemente do embate ente casamento religioso e casamento Civil, evidentemente é atual, merece reflexão e que cada um tire suas próprias conclusões.
Mas um detalhe precisa ser acrescido ao tema: este Decreto nº 295 teve vigência por curto espaço de tempo. Ele foi objeto de revogação expressa pelo Decreto nº 1069 de 22 de novembro daquele mesmo ano de 1890.
Já no final daquele ano, conforme consta da exposição de motivos para o cancelamento do Decreto 295, encontrava-se então “… assegurada a tranquillidade geral da Nação, reconhecido o seu governo por todos os Estados da America e grande numero dos da Europa, firmado em todos elles o credito publico brazileiro, constituido o Congresso Nacional, desappareceram os perigos que era dever de honra do Governo conjurar, afim de se organizar a Republica em perfeita paz” (5)
Era o movimento das engrenagens da história mais uma vez alterando as leis deste país.
Autor:
Marco Antonio de Oliveira Camargo – Oficial de Registro Civil e Tabelião de Notas – Sousas – Campinas – SP.
Fonte : Notariado