Por Silvia Felipe Marzagão
Na quarta-feira (3/4/2019), o Supremo Tribunal Federal iria discutir a possibilidade, ou não, do reconhecimento jurídico de uniões estáveis concomitantes. O recurso que seria julgado tinha como intenção o rateio de pensão por morte, à luz dos artigos 1.º, inciso III; 3.º, inciso IV e 5.º, inciso I, da Constituição Federal.
Em razão de questões internas, o julgamento foi adiado. A simples notícia da apreciação da questão, contudo, gerou rumores em vários veículos midiáticos que passaram a tratar a questão como concessão ou não de “direitos aos amantes” (termo, infelizmente, também utilizado por alguns juristas). A discussão, todavia, é muito mais ampla e profunda, não merecendo apenas enfoque especificamente moralista que a descaracterize.
O julgamento, ainda sem nova data, não versará acerca de reconhecimento de direitos àqueles que mantêm relações estritamente sexuais com pessoa comprometida, o que popularmente chamamos de amante. Amante, como se sabe, é aquele mantido à margem da sociedade, nas alcovas dos lençóis proibidos.
O que se está tratando é sobre a possibilidade de serem garantidos direitos semelhantes a dois núcleos familiares concomitantes, mantidos com a presença de um ente comum em ambos. Então, ainda que sejam núcleos particulares mantidos simultaneamente, estamos falando de conformações familiares – com filhos, responsabilidades, aflições, alegrias – que vivem juntas por anos e que, após o falecimento daquele que transitava entre as duas famílias, são relegadas a nada. Não estamos, portanto, falando de amantes no sentido estrito do termo.
Se discutirá, na verdade, a possibilidade de reconhecermos como união estável um relacionamento público, notório, estável e duradouro que ocorra paralelamente a outro com as mesmas características. Discutiremos a possibilidade da existência de duas uniões estáveis mantidas por uma mesma pessoa, com companheiros distintos, ao mesmo tempo, deixando evidente que o grande e principal debate que teremos será a definição acerca da monogamia como requisito presente ou não nas uniões estáveis.
Quando falamos de casamentos, a questão acerca da monogamia como princípio constitutivo é mais pacífica: a lei veda especificamente a possibilidade de pessoas casadas se casarem mais de uma vez (considerando nulo o casamento realizado nessas circunstâncias – artigos 1521, VI e 1548, I, Código Civil), além do fato de ser dever explícito do casamento a manutenção da fidelidade (art. 1566, I, Código Civil).
Já nas uniões estáveis, por sua vez, não há certeza com relação à monogamia como princípio intrínseco à sua existência. Não há – seja no Código Civil, seja na Constituição Federal – normas expressas como há para o casamento. Nem se diga, ademais, que o disposto no artigo 226 da Constituição Federal se prestaria a fazer crer que as uniões estáveis necessariamente se configurariam apenas em situações monogâmicas: há no texto constitucional somente exemplo de entidade familiar (união entre homem e mulher), inexistindo rol taxativo para tanto.
Podemos lembrar, do mesmo modo, que a fidelidade não é um dever expresso da união estável, sendo certo que o artigo 1723, § 1.º fala em lealdade. Há, portanto margem para discutirmos de forma ampla – e não somente pelo viés estritamente moralista – sob as implicações jurídicas de famílias que sejam mantidas simultaneamente.
Estamos, portanto, muito além de uma discussão simplista “amante versus manutenção da moral e bons costumes”. Estamos falando do direito de pessoas que convivem em entidades familiares, ainda que sejam simultâneas a outras com a mesma importância.
Vale ainda lembrarmos, neste sentido, a brilhante lição de Giselda Hironaka para quem família simultânea “não é família inventada. Nem é família amoral ou imoral, nem aética, nem ilícita. É família, e como tal, também procura o seu reconhecimento social e jurídico, assim como os consequentes direitos advindos desta sua visibilidade na vida social e no sistema de direito brasileiro”. (1)
Não podemos deixar de relembrar que, num passado próximo, outras conformações familiares foram cruelmente atacadas pelos defensores da moral e dos bons costumes: companheiros eram adjetivados com os mais tristes e ofensivos atributos (2), mulheres desquitadas sofriam fortíssima repressão social, chegando a ser expulsas de festas, eventos sociais e até excomungadas. Reconstruir a vida, para uma mulher desquitada ou mesmo viúva, era um pecado mortal, punido com completo banimento social.
Concluo pontuando que simplesmente deixarmos essas pessoas à margem do sistema jurídico pátrio não garantirá manutenção de preceitos morais supostamente existentes, tampouco se estará “punindo amantes”. Estaremos, isso sim, deixando sem tutela núcleos familiares que, sem dúvidas, merecem proteção e amparo legal.
(1) HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Revista Ibdfam: Famílias e Sucessões. In Famílias paralelas. Belo Horizonte: Ibdfam, v. 01 (jan./fev.), 2014, p. 59).
(2) Sugiro leitura, para estarrecimento, de artigo titulado A ‘Lei Piranha’ ou o fim do casamento à moda antiga, escrito por Saulo Ramos, um dos mais renomados juristas que este país já conheceu, demonstrando que os valores morais, muitas vezes, não acompanham as evoluções sociais e são usados para marginalizar e excluir pessoas.
*Silvia Felipe Marzagão é advogada do escritório Silvia Felipe e Eleonora Mattos Advogadas. Diretora do Instituto Brasileiro de Direito de Família (Ibdfam/SP); membro da Comissão de Direito de Família do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) e presidente do Núcleo de Aprimoramento Prático de Direito de Família e Sucessões (NúcleoFam)
Fonte: Estadão