Com o passar dos anos, vem-se abrindo espaço para a legitimação de diferentes modelos de família no Brasil, inclusive no âmbito legal. As mudanças, em grande parte dos casos, servem para fazer com que a lei passe a reconhecer e atender uma parcela da sociedade cujos vínculos familiares não se encaixam nos moldes já estabelecidos. É o que acontece, por exemplo, nas famílias que registram multiparentalidade, cuja demanda tem se mostrado crescente no Ceará nos últimos meses.
Trata-se de quando são registrados os nomes de dois pais ou duas mães na certidão de nascimento da criança ou do adolescente. É uma solução adotada, por exemplo, quando o pai ou a mãe, por algum motivo, não participa ativamente da criação da criança, que então aprende a chamar outra pessoa de pai ou mãe. Ao oficializar o parentesco, o processo que antes exigia a substituição do genitor biológico pelo adotivo hoje pode incluir ambos.
Adriano Leitinho Campos, defensor público e supervisor do Núcleo de Atendimento da Defensoria na Infância e Juventude (Nadij) da Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPE-CE), conta que o órgão tem atendido cada vez mais pessoas interessadas em passar por esse processo, que ainda é relativamente recente no Brasil. O aumento é impulsionado pelo Provimento 63 da da Corregedoria Nacional de Justiça (CNJ), de 14 de novembro de 2017, que dispõe sobre “o reconhecimento voluntário e a averbação da paternidade e maternidade socioafetiva”, conforme o texto do documento.
A procura, no entanto, não vem de imediato, com a solução vindo por sugestão dos próprios defensores, em grande parte dos casos. “As pessoas geralmente não têm conhecimento dessa possibilidade, é uma coisa muito nova, a procura geralmente é pela [adoção] uniparental, e com o desenrolar do processo nós informamos sobre isso e acaba transformando em adoção multiparental”, explica ele. Os casos mais comuns, continua, são os de padrastos que criaram a criança junto com a mãe e que passam a ser registrados como pais adotivos na certidão de nascimento do enteado ou enteada. Com a decisão do CNJ, é possível resolver o problema inclusive com uma simples ida ao cartório. Se antes isso era uma possibilidade que podia ser acatada ou negada, hoje ela não pode mais ser rejeitada caso a família solicite.
Há também ocorrências de outros tipos de adoção pouco convencional sendo trabalhados em paralelo pela Defensoria. Adriano destaca casos como os das adoções por casais homoafetivos, “que ainda aparecem bastante, apesar de não ter previsão legal, porque também não tem impedimento”, e adoções de pessoas com deficiência – como um caso recente de um casal de deficientes auditivos adotaram uma criança também surda-muda.
Afetividade
Segundo a Defensoria Pública, a partir de 1988 a Constituição reconheceu diversas formas de se constituir uma família, abrindo espaço para um padrão diferente, com preocupações voltadas ao desenvolvimento individual dos integrantes do núcleo familiar e, principalmente, com a valorização da afetividade.
“A multiparentalidade nada mais é do que a legitimação da paternidade e da maternidade de quem ama, cria e cuida da criança ou do adolescente como se fosse seu filho e, de igual forma, por ele é amado como pai ou mãe, sem que para isso, se desconsidere os pais biológicos. Nesses casos, não há a substituição de nenhum dos pais biológicos. Há apenas o reconhecimento de pai e/ou mãe socioafetivo, prevalecendo e reconhecendo o vínculo construído pelas partes”, explica a defensora pública Ana Cristina Teixeira Barreto.
Adriano ressalta que, apesar das mudanças recentes, um entrave que ainda aparece é a reação que parte da sociedade tem ao modelo de família proposto pela adoção multiparental. “Tem um preconceito, um tabu muito grande em relação a isso, ainda há muitos questionamentos, muita gente se preocupa com o que pode causar na criança, a confusão que pode gerar na cabeça dela ter dois pais ou duas mães na certidão. É uma coisa que precisa construir no social para se ter maior efetividade”, defende.
O exemplo do caso de Victória
Casados há 23 anos, Maria Rocilene Alves Sales e Antão de Morais Pinho sempre sonharam em ter filhos. A alegria da família chegou em 2002, quando a irmã de Rocilene, na época com 16 anos, engravidou e deu à luz uma menina: Victória. Por ser muito nova, a mãe deixava a filha aos cuidados dos avós maternos. Dois anos depois, a mãe saiu definitivamente de casa e a criança ficou. Foi a partir de então que Rocilene, tia biológica, assumiu os cuidados e isso se dá até hoje.
“No começo foi bem difícil, porque Victória ainda mamava e, como meus pais eram idosos, ficava bem complicado eles assumirem uma criança em fase de crescimento, que demandava tanta energia e dedicação. Foi aí que entramos de vez na maternidade e paternidade. Minha irmã depois de um tempo voltou, passou a morar com a gente. A Victória cresceu sabendo de todas essas questões da nossa família, que biologicamente eu sou a tia dela, mas nosso amor e nossa relação é de mãe e filha. Sempre vai ser assim”, resume.
Victória cresceu aos cuidados dos tios, que assumiram todas as responsabilidades da sobrinha, construindo uma relação familiar de afetividade. No entanto, na vida prática, a burocracia barra ainda algumas situações. “Passamos por algumas situações na escola onde ouvi ‘só a mãe pode resolver’. Outra vez, quase não conseguimos viajar, porque realmente não existe meu nome na certidão de nascimento. E tem toda aquela burocracia de viajar com a documentação adequada. O que mais nos incomoda hoje é porque eu sou a mãe e o meu marido é o pai. Simples assim. O amor não muda, só nossa história que é diferente”, complementa.
Após acionar o Nadij, a família conseguiu dar entrada em uma ação de adoção multiparental. “Já participamos do curso e estamos aguardando a visita social. Estou muito ansiosa por esse momento de poder aumentar minha família. Victoria também pede uma irmã e não vemos a hora de multiplicar esse amor”, finaliza Rocilene.
Documentação necessária
para realizar o processo
– Original da Carteira de Identidade e CPF dos adotantes
– Comprovante de renda dos adotantes (Original do contracheque, benefício do INSS, declaração de isento do IR ou declaração de IR)
– Original de comprovante de residência (conta de água, luz ou telefone)
– Original da Certidão de Casamento dos adotantes ou Declaração de União Estável (assinada por 02 testemunhas e firma reconhecida em Cartório)
– Original da Certidão de Nascimento ou Declaração de Nascido Vivo da criança a ser adotada
– Nome e endereço dos pais biológicos da criança (se souber)
– Declaração dos pais biológicos ou responsáveis consentindo com a adoção ou guarda (se houver)
– Fotos recentes dos adotantes com o adotando
– Certidão Negativa de antecedentes Criminais dos Adotantes (pegar no Fórum)
– Certidão Negativa Cível dos Adotantes (pegar no Fórum)
– Atestado de sanidade física e mental dos adotantes (com o médico)
– Declaração ou Atestado de Idoneidade moral dos adotantes
– Nome e endereço de 03 testemunhas
– Original da sentença que deferiu a habilitação do casal para a lista de adotantes, se houver
Fonte: O Estado Online / http://www.oestadoce.com.br/geral/cresce-demanda-por-adocao-multiparental