A facilitação do acesso à Justiça, o aparelhamento da Defensoria Pública, a facilidade de acesso a um advogado e um melhor esclarecimento da população sobre seus direitos vêm ensejando um crescimento exponencial da judicialização da saúde, por meio de demandas que objetivam leitos de UTIs, reparação por erros médicos, fornecimento de medicamentos, órteses e próteses, dentre outros.
É fácil ver o crescimento de tais ações. No âmbito do STJ, por exemplo, o número de casos especificamente de erro médico passou de 466 em 2015 para 589 em 2016. Em 2017, foram computados 26 mil processos[1].
E não apenas as ações de responsabilização do médico têm aumentado, segundo o Conselho Nacional de Justiça. Registraram-se, em 2016, 1.346.931 processos com o tema saúde. Conforme o mesmo CNJ, o pleito por medicamentos teve aumento de 1.300% em sete anos[2].
Percebe-se que há, pois, um crescimento significativo nos dias atuais do número de ações que têm o tema da saúde. Segundo informações do CNJ, havia, em 2010, cerca de 240 mil ações que tinham como objeto tal direito. Até o fim de 2016, tramitavam 1.346.931 ações que envolvem o direito à saúde.
Somente a União Federal gasta com demandas judiciais nessa área o montante de R$ 3,9 bilhões, o que equivale a um aumento de 727% de 2010 a 2016.
Além do pleito de fornecimento de tratamento, cirurgia, leitos, também há o pleito de medicamento, que é, inclusive, o objeto da maioria das ações envolvendo o direito à saúde, cujo aumento foi de 1.300% em sete anos[3].
O CNJ, ciente de tal crescimento, aprovou resoluções, portarias e recomendações, nas quais orienta os TRFs e TJs a criarem vara especializadas em Direito de Saúde, criação do Comitê Estadual da Saúde, criação do Fórum Nacional de Justiça para monitoramento e resolução das demandas de assistência à saúde, dentre outros.
A criação de tais fóruns e comitês é de suma importância, pois o Direito da Saúde e o Biodireito são áreas pouco discutidas nos âmbitos universitários e até com pouca oferta no âmbito profissional, motivo pelo qual a criação dos citados comitês e fóruns foi um grande passo para o Poder Judiciário, pois tais searas são repletas de questões divergentes e polêmicas.
Uma das polêmicas que envolvem o direito à saúde pública é em relação à dúvida da competência para fornecer o medicamento, tratamento, prótese e órteses pleiteados judicialmente. Se seria ela do município, do estado ou da União.
No Direito Constitucional brasileiro, notadamente a partir da Carta Magna de 1988, pode se afirmar, sem receio de equívoco, que a saúde é considerado um direito fundamental.
A Constituição Federal, a seu tempo, garante os princípios da primazia do direito à saúde até como pressuposto para o livre exercício do próprio direito à vida. É o que afirmam os artigos 6 e 196 da CF/88[4].
Assim, a respeito do direito à saúde no âmbito do Judiciário, os tribunais têm entendido que é dever do Estado, em seu sentido mais amplo, promover, proteger e recuperar a saúde de seu cidadão, custeando o tratamento que se revelar necessário, por meio da terapêutica eficiente em todas as modalidades.
Dessa forma, competiria ao Estado, no sentido lato sensu, ou seja, caberia à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios o resguardo dos direitos fundamentais relativos à saúde e à vida dos cidadãos, conforme o artigo 196, CF/88.
Destarte, o entendimento da solidariedade permite que o cidadão exija, em conjunto ou separadamente, o cumprimento da obrigação por qualquer dos entes públicos.
Contudo, a respeito dessa questão vale mencionar um aspecto importante. A Lei 8.080/90, que dispõe sobre o Sistema Único de Saúde, traz uma divisão de atribuição na saúde entre os entes federados em seus artigos 15 ao 18[5].
Além disso, o artigo 198, inciso I, da Constituição Federal, corroborando com essa descentralização da saúde da lei do SUS, estipula que os serviços de saúde serão prestados através de uma rede regionalizada e hierarquizada com descentralização de funções entre os rntes federativos.
Há, no caso, um verdadeiro conflito de regras constitucionais. De um lado, a regra da solidariedade no fornecimento de saúde (artigo 196, CF/88), e de outro, a regra da descentralização do SUS (artigo 198, I, CF/88). Nessas situações em que há conflito de normas constitucionais, o magistrado deve se utilizar do princípio da concordância, aplicando as duas regras, com proporcionalidade, evitando o sacrifício total das duas disposições constitucionais. Assim afirma Alexandre de Morais:
“quando houver conflito entre dois ou mais direitos e garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização de forma a coordenar ou combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual (contradição dos princípios) sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com sua finalidade precípua”[6].
O CNJ trouxe a resolução desse problema. O Enunciado 8 da I Jornada de Direito da Saúde e o Enunciado 60 da II Jornada de Direito da Saúde, ambas realizadas pelo citado conselho, ao meu ver, aplicam perfeitamente o princípio da concordância e da proporcionalidade no conflito de normas constitucionais, havendo uma harmonização entre as normas conflitantes, conforme se pode verificar dos enunciados abaixo transcritos:
“CNJ – I Jornada de Direito da Saúde – Enunciado n° 08 – Nas condenações judiciais sobre ações e serviços de saúde devem ser observadas, quando possível, as regras administrativas de repartição de competência entre os gestores”[7].
“CNJ – II Jornada de Direito da Saúde – Enunciado n° 60 – A responsabilidade solidária dos entes da Federação não impede que o Juízo, ao deferir medida liminar ou definitiva, direcione inicialmente o seu cumprimento a um determinado ente, conforme as regras administrativas de repartição de competências, sem prejuízo do redirecionamento em caso de descumprimento”[8].
Esse tema ainda vai ser muito debatido pelos juízes de primeiro grau e pelas turmas recursais ou tribunais de Justiça do estado, mas já se considera um grande avanço a possível mudança de entendimento, principalmente porque o CNJ é composto essencialmente de ministros do próprio STF.
Outro tema muito debatido nos comitês e fóruns de saúde é sobre a utilização da chamada Medicina Baseada em Evidência (MBE) nas ações que envolvem o direito à saúde. Entende-se como saúde baseada em evidência o seguinte:
“[…], saúde baseada em evidências (SBE) é definida como o elo entre a boa pesquisa científica e a prática clínica. Portanto, ela pode ser definida como saúde baseada na redução da incerteza.[…] Portanto, a saúde baseada em evidências consiste em tentar melhorar a qualidade da informação na qual se baseiam as decisões em cuidados de saúde. Ela ajuda o médico a evitar ‘sobrecarga de informação e, ao mesmo tempo, a encontrar e aplicar a informação mais útil”[9].
A MBE constitui o uso consciente de estudos médicos-científicos, que pode ser reprodutível e comprovado.
Ou seja, para o deferimento de qualquer tratamento, incluindo os medicamentosos, faz-se mister, inicialmente, ter evidências da efetividade, da eficácia, da eficiência e segurança do remédio. É a forma de averiguar se a conduta médica está em conformidade com os estudos científicos.
A Resolução CNJ 238, de 6 de setembro de 2016, concede, em seu artigo 1º, parágrafo 1º, atribuição aos comitês estaduais de saúde para a criação de núcleos de apoio técnico do Judiciário (NAT-JUS), constituídos de profissionais de saúde, para auxiliar o magistrado através de laudo consubstanciado na MBE[10].
O uso da MBE também é tratada no Enunciado 59 da II Jornada da Saúde do CNJ, afirmando que as decisões judiciais devem se embasar nela[11].
Assim, a MBE deve ser adotada pelos magistrados, pois ela é uma forma estratégica de o Poder Judiciário tomar decisões mais acertadas possível quanto à coercitividade do fornecimento pelo SUS do tratamento de determinada doença.
Já falando de outro tema, paira também muita dúvida se o Poder Judiciário poderia obrigar o poder público a fornecer medicamentos que estejam fora do protocolo do SUS. Em relação a isso, o Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial 1.657.156, fixou três requisitos básicos para seu deferimento: a) comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS; b) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito; e c) existência de registro do medicamento na Anvisa, observados os usos autorizados pela agência.
Vale apenas ilustrar que, quanto ao primeiro requisito estipulado pelo aresto acima, tal entendimento, inclusive, foi corroborado pelo Enunciado 16 da I Jornada de Direito da Saúde do CNJ[12].
Assim, pela leitura da jurisprudência elencada, temos ser plenamente possível o deferimento de liminar para obrigar que os entes federados forneçam medicamentos, mesmo que eles estejam fora do protocolo do SUS, contanto que haja o preenchimento dos requisitos estipulados pelo Superior Tribunal de Justiça.
Mas ainda há uma questão muito divergente sobre o tema, no caso, a exigência do registro do medicamento na Anvisa. Veja que o STJ colocou como requisito para a concessão do pleito de medicamento o registro do mesmo na agência.
Ou seja, entende-se que o direito à saúde não será plenamente concretizado sem que o Estado cumpra a obrigação de assegurar a qualidade das drogas distribuídas aos indivíduos mediante rigoroso crivo científico.
O CNJ definiu, ainda, em sua Recomendação 31/10, enviada aos tribunais de Justiça e aos tribunais regionais federais o pedido que seja evitado o fornecimento de medicamento não registrado na Anvisa ou em fase experimental[13].
Além dessa recomendação, o CNJ aprovou na I Jornada de Direito da Saúde o Enunciado 6, que estipula que as determinações judiciais devem evitar fornecimento de medicação não registrada na Anvisa. Também há vedação na Lei 8.080/90, em seu artigo 19-T.
Ou seja, percebe-se que a vedação do fornecimento de medicamento não registrado está bem balizada, tanto pela jurisprudência do STJ como pelos enunciados e recomendações do CNJ.
Todavia, o Superior Tribunal de Justiça, em 2016, no julgamento do REsp 1.621.854/2016, já deferiu o fornecimento de medicação não registrada na Anvisa, em total discrepância com tudo aquilo que já foi exposto.
Esse tema ainda é muito controvertido nos tribunais, sendo que, ao meu ver, a decisão mais acertada, no que pertine ao fornecimento de medicação sem registro pela Anvisa, é pelo seu deferimento. Ora, estamos diante de um conflito de regras: de um lado está a segurança do medicamento, e do outro lado o direito à vida, devendo, por óbvio, este prevalecer. Contudo, penso eu que cabe à parte comprovar, através da Medicina Baseada em Evidência, a efetividade do medicamento para sua moléstia.
Por fim, o importante é perceber que o Direito Médico, o Biodireito e o Direito da Saúde Pública é algo muito novo no âmbito dos tribunais havendo, ainda, muita disparidade de entendimento. Todavia, a criação dos comitês e fóruns do direito da saúde pelo Conselho Nacional de Justiça já foi um grande passo para o crescimento e entendimento de tais áreas do Direito, que são de extrema importância, nos dias atuais, em decorrência do crescimento exponencial da judicialização da saúde.
Fonte: Conjur